quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Uma História de Pai - Desejos

"Um dia você vai servir a alguém." (Vitor Ramil)

Minha filha tem 13 anos. É uma menina linda e com todos os componentes típicos do momento de vida. Ansiedade, dúvidas, medos, paixões, oscilações, vontades, desejos, mudanças biológicas, hormonais e instabilidades emocionais. E encontra-se, como a maioria das meninas de sua idade, verdadeiramente apaixonada por seu ídolo Justin Bieber.
Ainda no início deste ano havia prometido a minha filha que se o Justin Bieber viesse ao Brasil, eu a levaria ao show. Seria a sua primeira experiência neste aspecto e, como pai, desejava assumir esta responsabilidade em proporcionar este desejo. E é sobre a realização de desejos que me permito conversar com você, pois sinceramente não tenho certeza se há uma forma, um limite, uma maneira correta de realizar desejos de um filho. E por que fazemos isso?
Eu tive de meus pais e irmãos (sou o filho mais novo da família) carinho, afeto, respeito, educação e estímulo. Confesso que nos momentos mais difíceis da minha vida, foi minha mãe a única a me estender uma mão financeira, do que não me orgulho. Meu Pai era um motorista de táxi empregado, ou seja, não era dono do táxi e portanto tinha uma renda menor que mínima que mal sustentava o fumo. O braço financeiro da casa sempre foi o de minha mãe. E ela realizou desejos para mim que excederam a capacidade financeira dela. Por exemplo ela me oportunizou fazer o ensino médio em uma escola particular e só Deus sabe o que ela passou para pagar o meu colégio sendo uma humilde e honesta costureira empregada do famoso atelier de Dona Mary Steigleder (que fez o vestido de casamento da Sandra Bréa com o Arthur Guarisse na década de 80).
Confesso que, mais tarde, pude presentear meus pais com a graduação e o mestrado em Química, sendo o único de minha família com um curso superior. Hoje sei que aos olhos de meus pais foi uma vitória e uma devolução pequena ao que me proporcionaram. Porém nunca me dei o direito de ter desejos comuns aos jovens de minha época como de ir a shows musicais, cinema, teatro, festas e badalações na juventude. Meu foco era me formar, arrumar um bom emprego, comprar um carro e um apartamento e, assim, aliviar a carga que impunha principalmente a minha mãe. Porém essa percepção tive apenas depois de muitos anos, pois quando jovens olhamos o mundo de um ponto de vista “umbigal”, centrado em nós mesmos.
Mas desde a mais tenra idade, meus desejos mais concretos foram sempre de independência, o que chamava a atenção de muitas pessoas. Algumas pessoas me viam como um ser estranho e orgulhoso desde criança. Certa vez a Dona Mary Steigleder, uma senhora requintada, elegante, de voz firme e terna, que me conhecia desde bebê me ofereceu delicadamente um dinheiro (algo como R$ 10,00) como um “mimo” em um dia quando fui junto com meu pai buscar minha mãe após o trabalho no atelier que ficava na Avenida Independência, a frente do Teatro Leopoldina, depois batizado de Teatro da OSPA e que agora está desativado. Eu respondi à Dona Mary que não queria o dinheiro, nem precisava dele. Era minha mãe que trabalhava para ela. E à minha mãe o dinheiro era devido. Eu tinha 10 anos de idade e Dona Mary voltou seus olhos para minha mãe e disse “nossa, como ele é orgulhoso, não é”? Eu queria algo que resolvesse a minha vida. Nunca aceitei soluções paliativas ou pequenos prazeres simplesmente por que eram “de graça”. Eu queria ser independente. Mas minha mãe ficou chateada com meu comportamento.
Com o tempo devido, conquistei alguma independência e pude ter acesso a algumas coisas que me permitiram namorar, casar e trabalhar melhor, afinal a era da informação estava “bombando”.
O primeiro show que pude ir ocorreu na década 90 quando pude pagar com meu próprio salário e, se não me engano, era do Oswaldo Montenegro. Foi no então Teatro da OSPA.
Então o futuro chegou e me tornei pai. E busquei de todas as formas tornar a infância de minha filha feliz, provendo a ela muitas coisas que não tive.
Há meses atrás houve o anúncio oficial de que teríamos em Porto Alegre o show da Turnê Mundial do Justin Bieber no dia 10 de outubro de 2011. E tinha que cumprir o prometido.
A venda de ingressos pela internet iniciou às 00:00 do dia 1 de setembro de 2011. E lá estava eu em frente ao meu computador. Ciente de que era a primeira experiência de minha filha em shows e um sonho para ela, compramos o “Gramado Premium”, o ingresso em frente ao palco, o mais caro.
Iniciou-se o segundo dilema. Ela desejava acampar na fila para entrada no estádio a fim de garantir um lugar próximo ao artista e negociamos o mês todo. A minha preocupação residia na falta de percepção de minha filha sobre em que condições de saúde ela estaria para assistir o show, visto que ficaríamos horas em filas, expostos às intempéries (não sei o que seria pior, chuva ou sol escaldante), com alimentos inadequados. Enfim chegamos ao consenso de que iríamos na madrugada do dia do show apesar da sua contrariedade.
Então chegou a véspera do show. Era um domingo e o show caiu numa segunda-feira. Havia acertado com os meus patrões que a minha falta seria substituída por um outro dia de trabalho. Minha filha começou a agitar-se e por telefone falou com amigas que já estavam acampadas no local. Então ela se volta para mim, avisa que não iria dormir e que queria ir para junto de suas amigas. Eu estabeleci o limite, embora absurdo e acima de minha condições físicas, acordaríamos as 4:30 e por voltas das 5:00 lá estaríamos, pois o sono iria fazer bem a ela. Ela foi para a cama soluçando e disse para mim “obrigado pela pior noite de minha vida”! Suas palavras foram uma flechada no meu coração, mas sabia que estava fazendo o certo. Dormi triste.
Acordei às 4:30, minha filha saiu da cama logo depois, fizemos um breakfast com achocolatado e iogurte, fiz uma mochila com roupas (para eventual substituição) e partimos. Não desejava usar o carro pela confusão natural de trânsito nestes eventos. Fomos de metrô até o centro de Porto Alegre e de lá pegamos um taxi até o estádio Beira Rio. Era 5:30 quando chegamos e nos posicionamos no fim de uma fila enorme entre barracas e acampamentos. Acredito que havia de 500 a 1000 pessoas lá. Mas logo atrás de nós, em minutos, chegaram mais umas centenas de pessoas. Estávamos a 14h do inicio do show do Justin Bieber.
Em poucos minutos começa uma correria. O pessoal acampado a mais de uma semana tinha uma lista em torno de 150 a 200 pessoas que estavam a frente na ordem de entrada. A ordem das demais não havia registro. Então as pessoas que chegavam se amontoavam a frente do portão do estádio que ficava a um 300 m do início do acampamento. Confusão na certa. A fila que estávamos se desfez. Todos correram para a porta do estádio. Amontoou-se gente por tudo quanto é canto. Pais e crianças estressadas. Gritos e uma desorganização total. Estava amanhecendo por volta das 6:00 e o dia clareava.
Tivemos que nos reposicionar, a força policial da nossa valorosa Brigada Militar conseguiu colocar ordem e assegurar o posicionamento preferencial aos aproximadamente 200 acampantes listados. Os demais se posicionaram atrás como puderam. Assim fizemos. Então fitas de isolamento foram colocadas para organizar a fila que já era quase quilométrica. Era 7:00 e o sol já batia com vigor em nossas cabeças. Peguei dois bonés da mochila e colocamos. Eu havia previsto este transtorno, pensando que minha filha poderia ter impacto sobre sua saúde se ficasse no sol o dia inteiro. Faltavam 13h para o início do show. Desta forma conseguimos avançar nosso posicionamento original, não por esperteza ou deseducação, mas por que era a condição do momento.
Neste momento outro problema se iniciava, em algumas horas começaria o acesso das pessoas aos portões de entrada ao estádio dependendo do tipo de ingresso. Os portões de entrada somente abririam às 15:00. Então saí da fila deixando minha filha com amigas e fui buscar algo para comermos. Vários quarteirões de distância encontrei um supermercado. Comprei duas sombrinhas (guarda-chuvas), salgadinhos, água, refrigerante e duas banquetas de camping. Recebo uma ligação de minha filha que a fila começara a andar. Peguei um táxi e retornei à fila. Minha filha estava sem fome, bebemos água e refrigerante e usando as banquetas foi possível sentar um pouco à sombra dos guarda-chuvas.
Ás 10:22 nos posicionamos em frente aos portões 4 e 5 em nosso lugar na fila, ao sol. E lá ficamos até às 15:00. Minha filha não quis comer muita coisa, embora tenha oferecido várias vezes. Abriram-se os portões e tive que deixar as banquetas e os alimentos da mochila na entrada. As meninas corriam para se posicionar em frente ao palco. Começa uma aglomeração pois todas desejavam estar bem na frente do palco, mas não havia primeira fila para todas. Para se ter uma ideia, o "Gramado Premium" lotou com todas as pessoas ocupando somente a metade do espaço em frente ao palco, notadamente um aperto descomunal.

O sol estava mais intenso e assim ficou até as 18:00. Durante este período dezenas de meninas passaram mal. Estava previsto: sem dormir, sem comer, emocionalmente sensíveis, um calor insuportável, aquele aperto e sem poder sentar-se. A preocupação com minha filha aumentara. Mas ela estava bem. Aliás, a aglomeração era tanta que nem podíamos mexer os pés. Qualquer movimento podia nos fazer cair. Então minha filha se vira para mim e fala comigo as seguintes palavras: “Estou com fome”!

Nem os vendedores ambulantes chegavam aonde estávamos. Consegui um único alimento: um picolé de chocolate. Rezei para que este sustento lhe fosse suficiente. O resto foram copos de água de 200ml ao valor de R$ 4,00 (equivalente a U$ 2,50). Foram ao todo uns vinte e cinco copos de água só do meu bolso, compartilhados entre todas as pessoas que estavam próximas. Continuávamos em pé com sol a pleno, até o momento que fez alguma sombra no palco. Iria começar os shows de abertura por voltas das 18:45, com certo atraso. Os meus pés e pernas estavam queimando. Minha hérnia de disco lombar não se acusou e dei graças a Deus. Pensei diversas vezes em me afastar da multidão e sentar no chão, mas preocupado com minha filha e sua condição, fiquei por perto para observá-la.
Precisava,  de alguma forma, desviar o pensamento de minhas dores e do tempo que faltaria até o final do evento. Pois muito antes de começar eu já estava em frangalhos. Comecei a “twittar” sobre o que estava passando e a fazer comentários sobre a situação que passamos e os shows. Primeiro do Fat Duo, depois de Starship Cobra e, a seguir, com a introdução de um rapper, aconteceu, para o delírio de todas as meninas, a presença do Justin Bieber.

Eu tenho 1,88m de altura e a maioria das pessoas presentes não passava de 1,60m. Não preciso nem dizer o quanto eu importunei as meninas que infelizmente se posicionaram atrás de mim. A mochila que eu trazia, a qual foi muito útil nos momentos mais terríveis de espera, importunou quem estivesse a minha frente ou às minhas costas. Mas lembro de já haver comentado neste blog sobre como as pessoas, principalmente políticos se comportam sem empatia, pautadas somente no interesse próprio. Várias mães e meninas me batiam às costas e pediam para ficar a minha frente (como se houvesse espaço além do meu, próximo a minha filha). Então delicadamente eu explicava que não podia fazê-lo por que não tinha culpa de ter a altura que tinha e que não estava vendo naquele momento ninguém mais alto do que eu, de forma que se aplicasse o critério de ceder meu lugar em função da minha altura eu iria parar fora do estádio. Uma outra mãe querendo dar uma de “João Sem Braço” me cutucou muito e quando olhei para trás ela apontou para a filha e disse “ela está passando mal, deixe-a passar”, tentando novamente me convencer pela emoção para passá-la para a frente. Eu respondi que se ela estivesse passando mal deveria dirigir-se até os paramédicos mas que era importante a companhia de sua mãe. Respondi então “onde está a mãe dela”? Aquela senhora ficou em silêncio.
 Tirando as baquetadas (bastões coloridos e luminosos usados pela platéia no show) na minha cabeça, as incomodações de quem ficava atrás de mim, a dor insuportável nos pés e pernas, a fome, a sede, os gritos histéricos, tudo estava indo bem, principalmente com minha filha. Note que desde que entramos no estádio às 15:00, ficamos até o momento do show do Justin Bieber exatas 5h em pé, sem outra opção.
Segui “twittando” e fazendo comentários ácidos ao show do Justin Bieber, que vulgarmente e para facilitar a digitação no smartphone, referia como “Biba” em alusão a pronuncia que o rapper utilizava. O fato, musicalmente falando, que os profissionais do show como vocalistas (um quarteto de origem oriental excepcional nos vocais), street dancers, DJ e instrumentistas foram magníficos. Muito acima da performance mediana do astro principal, que abusou dos vocalizes, do playback e do apoio instrumental.
 Não se mostrou grande dançarino, e mesmo na bateria, violão ou piano mostrou que é, por enquanto, um instrumentista mediano, mas com imenso potencial. Sua voz infanto-adolescente é excessivamente aguda e mesmo não desafinando gritantemente, certamente o apoio do playback ajudou, embora tenha soado falso. A roupa que usava tinha um rabo (como se fosse um rabo de cavalo) com fios luminosos no bolso traseiro que estava estranho como se tivesse um busca-pé aceso no glúteo. Abusou de caras e bocas e, graças sua fotogenia, garantiu o delírio de todas as fãs presentes. Com tudo isso fui me distraindo no twitter, superando todas dores e desconfortos e observando minha filha, que chorou copiosamente durante todo o espetáculo.

O choro de minha filha me desconcertou. Não sabia se era de prazer ou de dor. Se estava chateada ou em delírio de fã. Mas não quis interferir. Ela estava passando bem e vivendo o momento que ela desejou com todos os seus requisitos atendidos, ou pelo menos quase todos.
Com 1h e 45min de show estava tudo acabado. Saímos do estádio por volta das 10:00 em frangalhos. Pegamos um táxi e fomos para a casa de minha mãe onde minha esposa havia deixado o carro sob minha orientação. Eu havia previsto a melhor logística de saída. Antes da meia noite da segunda feira estávamos todos em casa.
Tomei um banho e até uma massagem nos pés me foi concedida pela minha esposa e companheira. Não sabia o que estava sentido se é que sentia alguma coisa. Cheguei a pensar que a eutanásia é justa em alguns casos... e finalmente adormeci.
No outro dia, no trabalho, acessei o twitter e vi a seguinte postagem de minha filha em letras maiúsculas: “FOI O DIA MAIS FELIZ DA MINHA VIDA”! Era como se tudo que eu passei tivesse valido a pena. Tudo mesmo, não só naquele dia fatídico, mas toda a minha vida fazia algum sentido.
Então eu escrevi a seguinte e estranha frase no twitter: “Não poupe seus pais dos seus desejos pois só assim eles poderão permitir que você os faça felizes”.
O único modo de realizar nossos desejos é expressando-os. Passei minha vida inteira engolindo meus desejos por que não via a possibilidade de realizá-los. Aprendi a elaborar frustrações muito cedo na vida por que como não me permitia o desejo, a frustração era certa.
Sei que não terei condições físicas e financeiras de realizar todos os desejos de minha filha, mas a realização de algum deles permitirá a felicidade dela. E “quem beija meus filhos, minha boca adoça”, dizia a Dona Matilde. Me arrependi das críticas ao ídolo de minha filha. Não do conteúdo, mas do momento em que as fiz, pois não precisava que ela soubesse o que penso com a minha razão. Acabei postando que "se ela estava feliz, minha opinião pouco importa ou tem nenhum valor". Aprendemos juntos que a felicidade é sempre uma referência para o valor das coisas. E a felicidade de um filho, mesmo que este não compreenda ou reconheça o esforço que fazemos, nos é definitiva em termos de realização pessoal. Meu amigo Rodrigo Grecco mandou-me a seguinte frase da música de Vitor Ramil: "Um dia você vai servir a alguém". É isso mesmo.
O fato é que precisamos de sonhos e desejos. Eles são de fato a força motora da vida. A não realização não é frustrante por que a vida da gente não muda pelo que não acontece. Mas a expressão de nossos desejos é, sem dúvida, o primeiro meio para facilitar a conspiração do Universo a nosso favor pela força da atração. E se tivermos alguma chance de realizá-los, essa possibilidade se traduzirá em fato, conquista, realização e, portanto, felicidade. 
Por isso comecei o Manifesto Bonsensista, a fim de expressar o desejo de uma sociedade humana, igualitária, justa e feliz para todos, principalmente para os nossos filhos. Simples assim, mas pleno de bom senso.

Video: Vitor Ramil e Lenine -  Um dia você vai servir a alguem

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